terça-feira, 13 de abril de 2010

Anistia e Comissão da Verdade: uma outra culpa é possível.

Amanhã, segundo informa do site do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Eros Grau deve levar a julgamento a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153. Esse nome esquisito designa, nesse caso, uma ação que serve para perguntar ao STF se uma lei anterior à promulgação da Constituição é constitucional (ou, mais precisamente, se a lei foi ou não recepcionada pela Constituição), a exemplo do que ocorreu, recentemente, com a Lei de Imprensa, que datava da década de 1960. Na ADPF 153 o objeto das atenções é a Lei de Anistia, promulgada pelo Presidente Figueiredo em 28 de agosto de 1979.
Mais especificamente, questiona-se a anistia aos crimes conexos, ou seja, "os de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política" (art. 1º, par. 1º, da Lei de Anistia). Isso porque, sustenta-se, o desaparecimento forçado de pessoas, a tortura e as execuções sumárias extrapolam a natureza dos crimes políticos e não podem, sob pena de negar-se a dignidade humana, ser anistiados como se políticos fossem. Pedem, assim, que o STF interprete essa norma à luz da Constituição, excluindo do conceito de "crime conexo" aqueles atentatórios contra a dignidade humana, como os acima citados.
Estou absolutamente de acordo com as premissas do pedido: em que pese a importância de pacificação social das leis de anistia, não se pode referendar a violência estatal arbitrária, nada justificando a tortura, o desaparecimento forçado, as execuções sumárias etc.
Temo, porém, pelas consequências. Não são poucos os que sustentam a possibilidade de punir os militares, afastado o alcance da anistia. Em resposta, há os que afirmam que o terrorismo também deixaria de ser conexo, de sorte que os militantes de esquerda poderiam ser punidos. Discordo com veemência de ambas as posições. A irretroatividade da lei em matéria penal é garantia constitucional e a nova interpretação àquela norma, se vier, não poderá ter efeitos pretéritos, em nome do mesmo Estado Democrático de Direito que fundamenta o pedido da ADPF. De outro lado, nenhuma definição democrática de terrorismo poderá incluir a resistência civil a regimes autoritários.
Qual seria, então, o ganho de uma interpretação conforme à Constituição do parágrafo em debate? A possibilidade de as vítimas da ditadura militarem obterem o reconhecimento público e oficial de que essas pessoas foram vitimadas. É o que se chama de Direito à Memória. É o que o Plano Nacional de Direitos Humanos, em sua terceira versão, previu sob o nome de Comissão Nacional da Verdade, que tem por tarefa "promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional" (Diretriz n. 23, Objetivo Estratégico I). Quem ler as ações previstas, verá que nada se falar quanto a punir quem quer que seja.
Fomos deseducados pelo Direito penal no sentido de acreditarmos que a única forma de se responsabilizar, com seriedade, é por meio da sanção criminal (pena). Estamos diante de uma excelente oportunidade de exercício cidadão e democrático de "reconciliação nacional": o Estado brasileiro reconhecer os erros cometidos e declinando os nomes dos responsáveis, afirmando (reconhecendo publicamente) que tais ou quais atos foram realmente perpetrados e que nosso regime jurídico-político atual os considera abusivos. As vítimas conhecerão seus algozes, ou, ainda, terão o respaldo oficial de eles existiram e que foram realmente algozes. As consciências podem se apaziguar, a verdade (ou uma verdade bilateral, contraditada, à míngua de uma verdade absoluta) pode emergir e responsabilidades podem ser assumidas, sem que com isso empregue-se o Direito penal (ao menos em sua formulação clássica, apegada à pena). Há inúmeros mecanismos de justiça restaurativa que poderiam ser empregados fora (a exemplo de experiências na África) ou dentro dos procedimentos legais.
Sem culpados ou danados. Apenas contendores reunidos a partir de um dano de relação, que buscam cicatrizar uma chaga, o reconhecimento do erro e o exercício de simpatia pela dor do outro. Exercício de alteridade, que poderá abrir caminho para o perdão, com ganhos democráticos infinitamente superiores ao encarceramento de um punhado de representantes de um regime de exceção.

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