terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Novas diretrizes em tempos de paz

Quando o assunto é a reação virulenta à assim batizada "Comissão da Verdade", cujo nascedouro seria o Programa Nacional de Direitos Humanos III, acredito que estejamos envoltos nas confusões e crises de auto-imagem que perpassam o cenário da peça teatral Novas Diretrizes em Tempos de Paz. O imigrante polonês desembarcado no Brasil nas primeiras horas do final da Segunda Guerra Mundial, busca uma nova identidade despida de violências, quer ser agricultor e falar o idioma de bebês, o português, segundo seu mestre Krakowiak.O funcionário do sistema se vê descartado por aqueles a quem jurou lealdade; é também um apátrida, uma espécie de  Eichmann nos trópicos, que ouve de seu padrinho político que "nunca te dei nenhuma ordem". O burocrata pode, a seu arbítrio, conceder salvo conduto ao polonês. Ambos estão em conflito com seus passados de violência e não sabem como proceder em tempos de paz. Parece que estamos assim no Brasil quando o assunto é a ditadura militar. Há quem reclame punição aos torturadores; as Forças Armadas revidam dizendo que também os "terroristas" deverão ser punidos. Nem uma coisa nem outra. O decisivo é a reconciliação de um país com seu passado. Aliás uma leitura do PNDH III revelará que é disso que trata a diretriz e não de punir quem quer que seja. Não vejo nenhum ganho (para não dizer legalidade) em punir alguns octagenários pelas barbáries da ditadura; muito menos sentido em punir os militantes de esquerda. Chega a ser engraçado que depois de tantas dores, ainda se queira punir mais pessoas. Direito a que os perseguidos têm, sem sombra de dúvida, é de ver sua história contraditada. Toda sorte de informações quanto aos militantes de esquerda estão nos arquivos do DOPS. Todos os "crimes" que teriam cometido, catalogados. É imperioso que os crimes cometidos pela ditadura sejam igualmente escarancarados. Primeiramente, para que não se repitam, para que se calem os saudosos da ditadura. Em segundo lugar, para a paz de consciência que trará aos perseguidos o Estado brasileiro reconhecer, apenas reconhecer: sim, você foi uma vítima do Estado. Você não estava mentalmente enfermo quando julgava ter sido seguido pelas ruas; seu ente querido foi sim assassinado; seu amigo, sequestrado. A Alemanha fez isso brilhantemente e só com a reconciliação com seu passado terrível pôde caminhar como sociedade e, curadas as chagas, entoar o Hino Nacional na Copa do Mundo. Doeu, mas curou. Em países africanos, círculos restaurativos foram realizados apenas com o intuito de que algumas pessoas admitissem terem matado os parentes dos participantes daquele mesmo círculo. Causa dor, mas possibilita o perdão e a superação. Esse, quer me parecer, é o foco do PNDH III. Sem clamor punitivo, porém com respeito ao direito à memória e, mais, ao direito de escrever sua própria história, de ver sua biografia contada não apenas pelos membros do sistema, a Comissão da Verdade trará um grande ganho à sociedade brasileira e ao avanço aos direitos humanos no Brasil.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Rectius: quase a totalidade dos beneficiados retornaram ao cárcere

Incomoda-me muito ler a seguinte manchete: "Quase dois mil presos em SP não retornaram à prisão". Essa, especificamente, foi extraída do Conjur de hoje, mas outras tantas similares podem ser lidas e ouvidas em outros meios de comunicação.
A mim me parece muito mais significativo o fato de 91,5% terem retornado ao cárcere. Uma política educacional que reduzisse a evasão escolar a 8,5% ou uma terapia médica que tivesse meros 8,5% de recidiva seriam consideradas excepcionalmente bem sucedidas. Quando o assunto é segurança pública, o mesmo percentual assume outras cores. Na entrelinha está sempre a idéia de que se é muito condescendente com "esses vagabundos".
O único fundamento ético para se prender alguém está, retrospectivamente, em uma escolha do indivíduo de ter agido contra o Direito e, prospectivamente, na possibilidade de ele, por meio da pena, vir a eleger um projeto de vida conforme o Direito. Não acredito em nada disso, mas é em nome disso que todo o sistema de justiça criminal está organizado.
Pois bem, decorre das premissas mesmas da lógica punitiva que o cárcere vá se abrindo paulatinamente, permitindo o retorno gradual do apenado ao convívio social. De novo: não acredito em nada disso, mas é em nome disso que toda a execução penal está organizada.
O "indulto de Natal" é, portanto, medida totalmente coerente com os pressupostos do poder punitivo e, em que pese minha descrença na pena, mostra-se um sucesso retumbante.
Ora, que meros 8,5% não retornem ao cárcere está, a meu ver, até abaixo do esperado, considerando a condição sub-humana a que estão submetidos. Mas não percorramos essa senda. Proponho outro olhar: muito embora ninguém consiga medir, alardeia-se que a reincidência no Brasil é altíssima. Por altíssima, razoável supor que maior que 8,5%. Pois bem, esses sujeitos que não voltaram do indulto representam percentagem muito inferior ao de reincidentes, o que sugere que esses mesmos recalcitrantes, muito provavelmente voltarão posteriormente ao cárcere, agora pela condenação por outros delitos.
Muito mais significativo é o indicativo que 91,5% dos apenados que se valeram do indulto, em que pese o cárcere pra lá de degradante, terem retornado voluntariamente. Dito de outra maneira: contra todas as expectativas, a esmagadora maioria dos beneficiados quer sim finalizar o cumprimento da pena e seguir com suas vidas digamos, por falta de melhor palavra, "não-criminosas".
Reitero meus aplausos aos indultos natalinos e a todas as medidas de incremento de dignidade no cárcere. Lamento, por fim, que a imprensa sirva como fio condutor de uma irracionalidade punitiva, produto de uma inércia não-reflexiva, quando o assunto é a punição. Trocadilhos à parte, uma pena.