sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Rectius: quase a totalidade dos beneficiados retornaram ao cárcere

Incomoda-me muito ler a seguinte manchete: "Quase dois mil presos em SP não retornaram à prisão". Essa, especificamente, foi extraída do Conjur de hoje, mas outras tantas similares podem ser lidas e ouvidas em outros meios de comunicação.
A mim me parece muito mais significativo o fato de 91,5% terem retornado ao cárcere. Uma política educacional que reduzisse a evasão escolar a 8,5% ou uma terapia médica que tivesse meros 8,5% de recidiva seriam consideradas excepcionalmente bem sucedidas. Quando o assunto é segurança pública, o mesmo percentual assume outras cores. Na entrelinha está sempre a idéia de que se é muito condescendente com "esses vagabundos".
O único fundamento ético para se prender alguém está, retrospectivamente, em uma escolha do indivíduo de ter agido contra o Direito e, prospectivamente, na possibilidade de ele, por meio da pena, vir a eleger um projeto de vida conforme o Direito. Não acredito em nada disso, mas é em nome disso que todo o sistema de justiça criminal está organizado.
Pois bem, decorre das premissas mesmas da lógica punitiva que o cárcere vá se abrindo paulatinamente, permitindo o retorno gradual do apenado ao convívio social. De novo: não acredito em nada disso, mas é em nome disso que toda a execução penal está organizada.
O "indulto de Natal" é, portanto, medida totalmente coerente com os pressupostos do poder punitivo e, em que pese minha descrença na pena, mostra-se um sucesso retumbante.
Ora, que meros 8,5% não retornem ao cárcere está, a meu ver, até abaixo do esperado, considerando a condição sub-humana a que estão submetidos. Mas não percorramos essa senda. Proponho outro olhar: muito embora ninguém consiga medir, alardeia-se que a reincidência no Brasil é altíssima. Por altíssima, razoável supor que maior que 8,5%. Pois bem, esses sujeitos que não voltaram do indulto representam percentagem muito inferior ao de reincidentes, o que sugere que esses mesmos recalcitrantes, muito provavelmente voltarão posteriormente ao cárcere, agora pela condenação por outros delitos.
Muito mais significativo é o indicativo que 91,5% dos apenados que se valeram do indulto, em que pese o cárcere pra lá de degradante, terem retornado voluntariamente. Dito de outra maneira: contra todas as expectativas, a esmagadora maioria dos beneficiados quer sim finalizar o cumprimento da pena e seguir com suas vidas digamos, por falta de melhor palavra, "não-criminosas".
Reitero meus aplausos aos indultos natalinos e a todas as medidas de incremento de dignidade no cárcere. Lamento, por fim, que a imprensa sirva como fio condutor de uma irracionalidade punitiva, produto de uma inércia não-reflexiva, quando o assunto é a punição. Trocadilhos à parte, uma pena.

3 comentários:

  1. Davi, vou falar minha opinião e espero por favor não seja interpretada como reacionária.
    Primeiro, importante: estou 100% de acordo com a sua pontuação sobre o indulto de natal. Apenas 8,5% de fugas realmente é algo incrível (stritu sensu, não crível, inverossímil). Acho que é algo que mostra que um acompanhamento pós-prisão decente realmente poderia minimizar muito a reinciência.
    Isto posto, vou para um exemplo extremo baseando-me na doutrina da recuperação: se um sujeito não tem possibilidade de recuperação, no limite ele não deve ser preso?
    Eu concordo com vc e tbm não acredito nos fundamentos da execução criminal. Mas eu não acredito por outros motivos. Eu acho que a base da punição é a punição mesmo. Não pelo benefício social, ou pela recuperação dos presos. Mas pela relação de causa-efeito. Fez m**** tem que ser punido.
    Claro, não sou jurista, nem filósofo, e talvez num debate poderia ser engolido, quem sabe por não ter argumentos claramente delineados e debatidos, contra toda uma doutrina já amplamente discutida. Mas tenho uma intuição sincera sobre o que acredito. Não concordo muito com essa idéia de que a coisa mais importante na pena é recuperar o preso. A função do processo social-penal, na minha opinião, é punir.
    Pode parecer meio besta. Mas isto posto, toda essa discussão de mérito acaba. Podemos então, pragmaticamente, punir e partir para o ponto 2: como fazer a pena ser humana e proporcional ao crime. Não é só porque o cara fez m**** que tem que ser tratado com animal. Ponto 3: como tratar a pessoa que já pagou pelo que fez, e reinserí-la na sociedade.
    Acho que tentar minimizar qualquer ponto acima acirra a questão social e humana também das pessoas que expiam e sofrem a criminalidade, de maneira não técnica. Assim como uma legislação deve conter os preceitos humanos e respeitar o indivíduo, deve respeitar também o sentimento e preceitos do cidadão comum. Deve haver um equilíbrio nisso. Senão não funciona politicamente.
    Opinião de leigo, mas de um observador sincero.
    Abs!
    Daniel Allegro, dsallegro@uol.com.br

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  2. Dani: você não está sozinho quando defende que a função do Direito penal é punir como retribuição ao mal causado. Essa retribuição, porém, ou bem é uma vingança ou, racionalizada por meio do filtro do Estado, é uma política (lato senso). A primeira hipótese tem de ser, por definição, descartada. Resta a segunda: é ação estatal e, como tal, tem de ser validada por algum nível de racionalidade e de utilidade. É aqui que entram as finalidades preventivas da pena. É só uma utilidade para além da simples punição que difere a pena como medida estatal da vingança por meio do Estado. Mas adianto, desde logo, que sou um descrente da pena. Violência e repressão geram indivíduos inseguros e dependentes, que tendem a reproduzir violência em suas relações. Mais do que punir, deveríamos pensar em modos de atribuição de responsabilidade, de maneira mais envolvente entre o infrator e sua vítima, de sorte que ele pudesse reconhecer o mal que fez; e não engoli-lo garganta abaixo. Abração, Davi

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  3. Davi, como seriam esses modos de atribuição de responsabilidade que sugere? Como acha que o Estado poderia criar essa alternativa e mais, você acha que seria possível mudar toda essa estrutura e cultura prisional, para outro sistema?
    Acho que como está, realmente está falido. As prisões mais do que reintegrar, viram escolas de bandidagem e violência, uma violência entre muros que a mídia também nunca mostra - e é uma realidade de barbárie. Como sai um ladrão de galinhas da prisão? Poderá se reintegrar à sociedade com um emprego? Continuará roubando galinhas, ou passará para outras modalidades mais escabrosas?

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