terça-feira, 31 de agosto de 2010

Justiça de transição


A Faculdade Nacional de Direito (UFRJ) abrigará, em outubro, seminário internacional dedicado ao tema da justiça de transição no Brasil. Em que pese nossa experiência ditatorial não ter sido nada branda, a busca por responsabilização dos agentes estatais em razão dos bárbaros crimes cometidos tardou muito em relação a outros países latinoamericanos. Bem verdade que organizações tais como o Tortura Nunca Mais se organizaram logo após a redemocratização, mas as instituições só começaram a se movimentar rumo a processos de justiça de transição muito mais recentemente.
Já escrevi no blog como vislumbro uma diferença muito clara entre o clamor por responsabilização e o clamor por punição. São, muito embora variações sobre um mesmo tema, movimentos distintos, com repercussões jurídicas e políticas bem diversas. Aliás, o post veio na esteira do julgamento pelo STF da ADPF da Lei de Anistia, em que insistia que tomar a (correta) decisão do Supremo - de não permitir a aplicação do Direito penal aos agentes públicos anistiados - como ponto final no capítulo "revisitar as atrocidades da ditadura" seria um tristíssimo equívoco.
Desde então, dois episódios da justiça paulista merecem breve comentário. O juiz Ali Mazloum indeferiu pedido de arquivamento de inquérito policial que apurava o delito de ocultação de cadáver cometido contra Fábio Molina, militante de esquerda preso em 1971 pelo famigerado DOI/CODI. O magistrado afirmou que a contagem do prazo prescricional, no delito em questão, começa a contar da data da descoberta do cadáver. No que interessa à análise, afastou a incidência da Lei de Anistia, por entender que o referido delito estaria fora do alcance do esquecimento estatal. 
Em sentido diverso - e, no meu entender, mais alinhado tanto às garantias penais-constitucionais, como à perpectiva produtiva e positiva da Justiça de Transição - a ação civil pública intentada pelo Ministério Público Federal em São Paulo, em que se requer "a responsabilização pessoal de Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araujo e Dirceu Gravina, os dois primeiros aposentados e o terceiro ainda na ativa. O MPF pede, também, a reparação por danos morais coletivos e a restituição das indenizações pagas pela União" (JBOnline de 30/08).
Disso sim se trata, em meu enteder, o direito à memória e os preceitos da justiça de transição: tornar responsável o Estado e seus agentes pelos abusos cometidos. O emprego do Direito penal, após 30 anos, contraria os mesmos alicerces do Estado Democrático de Direito que a ditadura solapou, de sorte que seria algo na linha do "ladrão que rouba ladrão". Já ações como essa vão ao cerne do problema: geram o reconhecimento (i) de que o fato ocorreu; (ii) que foi cometido por pessoas determinadas; e (iii) que responderão pelos delitos cometidos, ainda que não por meio das sanções penais.
"Com o desenvolvimento das investigações", prossegue a reportagem do JBOnline, " o  MPF identificou que o processo de consolidação da democracia e reafirmação dos direitos e garantias fundamentais suprimidos pela ditadura requer do Estado brasileiro a implantação de medidas de Justiça Transicional: esclarecimento da verdade; realização da justiça, mediante a responsabilização dos violadores de direitos humanos; reparação dos danos às vítimas; reforma institucional dos serviços de segurança, para que respeitem direitos fundamentais; e promoção da memória, para que as gerações futuras possam conhecer e compreender a gravidade dos fatos. O objetivo dessas medidas é evitar que atos tão desumanos se repitam".
Aplausos.